27 fevereiro, 2007

No trem

Costumava usar o trem em horários em que os vagões estavam mais tranquilos, menos cheios de "sovacos fedidos" e, consequentemente, vez ou outra conseguia um lugarzinho pra sentar.

Uma vez estava sentada no corredorzão do vagão, bem na frente de três mulheres enquanto fingia ler um livro.

Aliás, o livro poderia estar de cabeça pra baixo que eu nem notaria tamanho era o interesse no assunto das três.

Pra variar, a conversa se resumia a médico, doenças, gente moribunda e coisas do gênero.

"Eu não confio em médico. Estou com dor no braço há três semanas e não vou ao médico"

"Ai, mas o médico estudou pra ajudar você a curar", retrucou a amiga.


"Meu médico é Deus", continuou a primeira. "Se Ele quiser que eu me cure, eu vou curar. Se não, vou morrer."

"Por causa de uma dor no braço? Qué isso!"

Aí a terceira mulher, até então só olhando a paisagem da linha do trem, resolveu se meter: "Vitinho fez um festão ontem lá em casa"

"Só Deus pode me curar", voltou a falar a sem fé nos médicos.

"Minha irmã teve dor no braço uma vez e não era nada", soltou a segunda a entrar na conversa.

A partir daí, as três doidas começaram uma série de frases soltas que só completavam o que a mesma dizia anteriormente, ou seja, três monólogos distintos, como se houvesse mais três pessoas conversando com elas separadamente.


"Ai, tinha refrigerante, bolo e até churrasco, menina!"

"Eu já pedi pra Deus me curar. Tenho muita fé Nele!"

"Eu também tenho uma marquinha aqui no braço que ás vezes dói, mas eu vou no médico"

"Ói, você tinha que ver. Tinha tanta gente, tanta vizinha!"

"Deus é meu médico"

"..."

"Que Deus é teu médico o quê! Tem que ir no hospital pro dotô examiná. Deus ajuda a curar, mas tem que ir."
Repentinamente a mulher da festança entrou no assunto da primeira mulher.

"Ah é? Se tivessem tirado tua filha no hospital como tiraram a minha, você também não ia acreditar em médicos!"


Silêncio...

Ai gente, chama o Ratinho! Que é isso??? A essa altura já tinha largado o livro e estava quase sentada ao lado delas acompanhando o drama da vida real.

E a mulher continua, quase chorando: "Eu tenho certeza que minha filha está no Japão. Ela nasceu, eu segurei ela, amamentei e quando era pra dar a segunda mamada, a méidca japonesa veio me dizer que minha filha tinha morrido e já tinha enterrado, por isso eu não podia mais vê-la"

O assunto dela realmente ganhou a atenção das outras, que até pararam seus monólogos para ouví-la, mas jamais conversar, comentar sobre.

"Eu procurei a menina durante treze anos e aí entendi que não tinha mais jeito. Perdi ela. Por isso acho que médico é tudo uma cambada de piiiiii..."

Nesse momento o condutor avisa com voz sexy: "Estação Brás".

"Você vai nessa?", pergunta uma delas.

"Vou sim", responde uma outra, e saem as três se espremendo na plataforma, quando ouço meio de longe:

"Mas menina, tinha tanta comida ontem..."

Não sei o que é pior: a falta de solidariedade das possíveis companheiras ou a incapacidade de se comunicar! Tsc tsc...

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